Acho que é muito comum ouvir que o rock morreu. E logo em seguida, como um tique nervoso inevitável, vem uma discussão boba sobre como as coisas antes eram melhores, como provavelmente a Anitta ou o sertanejo sofrência estão destruindo a música brasileira, e como, sei lá, o Renato Russo não deixaria isso acontecer. A mesma ladainha reciclada.
Mas não é verdade. Todo mundo sabe disso. E tem dias que em Curitiba, essa cidade onde qualquer som acima de 60 decibéis incomoda vários síndicos no raio de 500 metros, te lembra disso. Domingo, quinze de junho de dois mil e vinte e cinco, foi um desses dias. O Underground Fest não apenas provou que o rock está vivo, como mostrou que o rock curitibano talvez esteja escrevendo um capítulo novo, interessante e necessário.
Mas o que é esse tal de Underground Fest e o que rolou de tão especial?
Criado em 2023 por Samuel Carvalho, o Underground Fest nasceu com o propósito de apoiar bandas e artistas independentes de Curitiba. Um lugar onde nomes novos e veteranos podem dividir palco, cigarro e microfone sem que ninguém pareça deslocado. De lá pra cá, o evento virou ponto de encontro entre música, arte e cultura urbana. Além dos shows, tem exposições, flash tattoos, brechós e marcas independentes. Uma bagunça organizada, do jeito que tem que ser. No dia 15, rolou uma edição especial: a Festa da Firma, em comemoração ao aniversário do próprio Samuel. Onze bandas estavam escaladas, mas como todo bom evento independente, imprevistos fazem parte do rock. Granizo, Helena e os Caracóis e Algésico não conseguiram tocar. Mas o que rolou foi suficiente pra deixar claro que existe público, sede e energia pro underground curitibano. Algo novo está acontecendo. Uma fase nova, que talvez esteja criando um novo momento coletivo pro rock local. Não é como se essa nova fase apagasse o que veio antes ou as bandas que já estavam na ativa. Pelo contrário, é como se tudo o que foi feito até aqui tivesse levado exatamente pra esse momento. Lembra, de longe, o que rolou em Seattle nos anos noventa, aquela colisão de estilos, de urgências, de vozes dissonantes que juntas, criaram algo maior.
Curitiba sempre teve bandas. O problema é que elas andavam isoladas. Cada uma no seu campo, no seu som, no seu público. Como se esse grande campo curitibano, até então dividido em nichos, ou é rock em inglês, ou é punk, ou é indie com choruszinho, ou é selo tal, começasse finalmente a se misturar. E é o que anda acontecendo, mas que ficou bem explícito nesse último domingo. Quando se mistura os artistas, principalmente quando o evento não gira em torno de um som específico, mas de encontros e contrastes, tudo pulsa mais forte. Fica mais vivo. Mais interessante. É gente que nunca se encontraria se trombando no fumódromo pra pedir um isqueiro. É o barulho de uma distorção estralando enquanto alguém tropeça num pedal emprestado. É uma bagunça recreativa e não uma curadoria pasteurizada, com algum favoritismo pessoal. Misturar bandas e gêneros é arriscado, eu sei. Mas por que tratar o público como se fosse unidimensional? É assim que se abrem caminhos novos, misturando. Num mundo onde tudo é “algoritimicamente” perfeito, onde o streaming sempre empurra uma banda que soa exatamente como a última que você ouviu, às vezes o caos e a surpresa perdem o valor. O Underground Fest devolveu essa surpresa.
O dia começou com a Retravo, uma banda nova, mas que não se esconde atrás disso. Eles chegaram como quem sabe o que quer dizer, post-grunge sem disfarce, com o Dylan no vocal trazendo uma entrega que lembra Layne Staley, se ele tivesse crescido ouvindo Reação em Cadeia. Depois veio Mosby, que colocou todo mundo pra se mexer com som próprio e covers bem escolhidos de Fresno e NxZero. O primeiro disco deles, Intensidade Calculada, tá pra sair, com três clipes prometidos. Vale acompanhar. Na sequência, Adeusaturno. Não posso dizer como o show começou porque eu estava cantando. Pediram bis. O baterista da Demos me deu um chope logo no final do show, foi um bom momento.
Falando neles, a Demos não sobe no palco, ela invade com classe. É como se alguém tivesse colocado o pop punk num liquidificador com rock alternativo e uns traumas de adolescência tardia bem resolvidos. Sarah é a tipo de vocalista que não performa emoção, ela arranca do osso. Ninguém fica parado. Talvez uma das bandas mais redondas dessa nova leva, e ainda assim, perigosamente instável de um jeito ótimo. A Danse Noir chegou depois, trazendo camadas e mais camadas de som. Shoegaze, math rock, emo midwest, alternativo. É um mergulho nas dores modernas. Letras intensas, clima denso, mandaram um cover de Title Fight que ficou bonito demais, arrepiou. Foi uma muralha sonora bonita de se ver, e difícil de esquecer.
Em seguida veio Lincoln com seu projeto solo, Deus-Verme. Difícil explicar. É monólogo, é noise, é jazz que sangra, é palavra cuspida com gosto de ferrugem. Um ritual onde se sentar no chão parece mais coerente do que dançar. Quem viu, entendeu. Ou não. Mas sentiu.
A maior surpresa da noite foi Murro. Show intenso, direto ao ponto, violento. Letras sem licença, bateria sem piedade. Miguel, ou melhor conhecido como Nojera, deu uma aula. A expectativa para bandas novas de Curitiba agora passa por eles. E com razão. A noite finalizou com Átimo. Pegaram o grotesco da Murro e adicionaram um toque experimental, construindo um som atmosférico entre o peso e a contemplação. Chamaram Sarah da Demos, Samuel, Orthey e Dennys da Granizo pra dividir o palco. Uma bela bagunça pra fechar a noite fria.
Enquanto eu pegava o último busão pra casa, acabei conversando com dois adultos que viram os shows desde adeusaturno até o fim. Estavam na casa dos quarenta e tinham vivido intensamente o movimento curitibano dos anos 90. E me disseram que o Underground Fest foi algo diferente. Genuíno. Bom. E que aquilo tudo que tinha acabado de acontecer fez eles se lembrarem de quando começaram a se apaixonar por música. Eles começaram a falar da época deles, e isso só confirmou que o Samuel, ao reunir amigos e bandas num evento que não segue fórmula e molde nenhum, está criando uma nova cara pra esse novo momento coletivo. Porque esse nichamento exagerado do rock curitibano, numa cidade que orgulhosamente se diz a capital do rock mas tenta matar sua vida noturna a cada nova lei ou fiscalização todo dia, pode ser um grande atraso. Tivemos Demos, que vai de Olivia Rodrigo a O Grilo, no mesmo evento que Murro, que soa como Dystopia e Carcass. Isso é lindo. Isso é possível.
Curitiba, claro, não é só essas bandas. Tem muito mais. Muita gente puxando essa carroça no braço. E é por isso que vale destacar projetos como o Soulless Pumpkin, que vem dando voz a uma diversidade absurda de artistas da região de Curitiba. Vai além da música, reconhecendo cada engrenagem do submundo. Bruna (Beguh), criadora do projeto, se apaixonou pelo autoral em São Bento do Sul/SC, mas foi em Curitiba que mergulhou de cabeça nesse universo. O time se fortaleceu com Lucas (Lumbra), que virou produtor do projeto e peça essencial na continuidade dele.
Tem também o Jukebox CWB, que aposta no jornalismo musical com alma de fanzine moderno: entrevistas, coberturas, histórias e pequenas revoluções contadas com afeto. Um arquivo vivo da cultura local. E claro, a Revista Repeteco, que inspirou esse texto. Um coletivo de entusiastas da arte, do jornalismo e do barulho. Gente que escreve porque ama, que escuta porque precisa e que acredita que a arte ainda vale alguma coisa.
São essas vozes que garantem que o barulho não seja em vão. Então não. O rock não morreu. Ele só está no underground.
Fiz uma playlist com algumas bandas e artistas curitibanos (os que estão no Spotify, pelo menos, o bom mesmo é sempre ver ao vivo). Segue o link: